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POSSIBILIDADE DO USO DO CANABIDIOL NO TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA: O QUE OS ESTUDOS NOS MOSTRAM?

Atualizado: 4 de jul. de 2021



O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um complexo transtorno do desenvolvimento neurológico, caracterizado pelo comprometimento de dois domínios centrais: (1) Dificuldade de comunicação e interação social (incluindo o atraso de fala); (2) Presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos. De acordo com a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), o que no Manual anterior (DSM IV) era classificado como Síndrome de Asperger, o transtorno desintegrativo da infância e o transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação atualmente deve receber o diagnóstico de TEA.


Atualmente, o autismo é considerado um dos transtornos do neurodesenvolvimento mais prevalentes na infância, sendo descrito um aumento dessa prevalência em vários países nas últimas décadas. De acordo com o Centers for Disease Control and Prevention, (CDC) estima-se que 1 em cada 54 crianças terá o diagnóstico de TEA, observando-se que o diagnóstico é feito de 3 a 4 vezes mais em meninos. Para saber mais sobre as diferenças e características do autismo em mulheres clique na imagem abaixo:


Em fato, mesmo com intensas pesquisas, ainda é desconhecido o mecanismo fisiopatológico exato pelo qual o autismo se desenvolve, mas acredita-se que haja um envolvimento complexo entre fatores genéticos e ambientais. Em consequência desse desconhecimento, há uma dificuldade em estabelecer tratamentos medicamentosos para aquelas dificuldades no tratamento do espectro autista que demandem a intervenção com remédios.


Atualmente a abordagem do paciente dentro do TEA é baseada no atendimento multidisciplinar, com propostas educacionais, psicossociais e farmacológicas (quando necessário). O uso de tratamento com medicação contribui para melhora de determinados comportamentos, que podem impedir que o indivíduo participe ativamente na sociedade. As classes de medicamentos mais utilizadas são antipsicóticos, antidepressivos, anticonvulsivantes e estimulantes. Entretanto, o uso desses medicamentos se dá em sua maioria de forma off label, uma vez que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autoriza apenas o uso da Risperidona e da Periciazina para o controle dos sintomas associados ao TEA, porém pelo FDA (Food and Drugs Administration - equivalente a ANVISA nos Estados Unidos) as únicas medicações aprovadas para uso no autismo são a Risperidona e Aripiprazol.


Apesar de vários estudos acerca das opções terapêuticas medicamentosas para o TEA, ainda há uma limitação na escolha de fármacos, o que é um fator agravante visto que 45-75% dos pacientes com autismo podem necessitar de terapia complementar farmacológica. Sendo assim, faz-se comum a prática de prescrição fora dos limites estabelecidos pela bula pelas autoridades regulatórias. Soma-se a isso o número de efeitos colaterais relacionados aos medicamentos clássicos, que podem desencadear quadros de insônia, compulsão alimentar, agressividade e irritabilidade.


Sob essa ótica, entende-se a necessidade de novas pesquisas e opções medicamentosas para o controle de determinados comportamentos apresentados no TEA. Dentre estudos recentes, uma das possibilidades é o uso do Canabidiol (CBD), que, a partir do seu potencial terapêutico, pode trazer benefícios como a diminuição da agressividade, da insônia, da hiperatividade, entre outros.


Há anos, estuda-se os efeitos medicinais da planta Cannabis, sendo descrito ao longo dos anos o uso dela no tratamento de dores, epilepsia, transtornos psiquiátricos e outros. Ainda sem o reconhecimento estrutural-químico da planta, e com o surgimento de novas opções farmacológicas, seu uso dentro da medicina caiu em desuso ao passar do tempo. Entretanto, na década de 1960, identificou-se as principais estruturas químicas da cannabis. Dentre, elas estão o canabidiol (CBD) e o Δ9-tetraidrocanabinol (THC), sendo o último o componente psicotrópico, responsável pela alucinação, modificação de percepção e alguns outros efeitos que comumente são associados ao consumo de maconha. As duas moléculas são diferentes e agem no corpo de forma diferente, falaremos melhor em artigo posterior sobre as diferenças.



Primeiramente, os estudos identificaram o potencial efeito do THC como anti-epiléptico e sedativo. Contudo, atualmente, estuda-se predominantemente as possíveis aplicações medicinais do canabinóide não-psicotrópico, ou seja, o CBD. Acredita-se que ao atuar nos receptores canabinóides (CB1 e CB2), o CBD pode apresentar efeitos anti-inflamatório, anti-oxidativo e neuroprotetor.


No que tange à administração de CBD no espectro autista, a literatura científica ainda se encontra escassa, porém alguns estudos conseguiram demonstrar melhora dos sintomas. Estudo feito por Barchell e colaboradores em 2019 demonstrou que em uma amostra de 53 pacientes com TEA que o CBD pode ser efetivo para o tratamento do comportamento agressivo, hiperatividade e ansiedade, porém 21,6% dos pacientes não reportaram melhora com o uso do CBD e 3,9% relataram piora do quadro.


Já estudo conduzido por Bar-Lev e colaboradores também em 2019, com uma amostra de 119 pacientes demonstrou que 90,2% relataram melhora na inquietação, nos ataques de raiva, na agitação, na ansiedade, no sono, na fala e em problemas digestivos. Em relação aos efeitos colaterais, 81,36% dos pacientes não apresentaram nenhum efeito colateral, enquanto que o restante apresentou efeitos colaterais leves, sendo os mais comuns: inquietação (5,08%), sonolência (2,54%) e efeitos psicoativos (2,54%).


Outro estudo liderado por Fleury-Teixeira e colaboradores em 2019, relatou que em uma amostra de 15 pacientes houve melhora no sono, nos ataques epilépticos e no comportamento dos pacientes durante a crise. Além de melhora no desenvolvimento motor, na comunicação, na interação social e na performance cognitiva. Dentre os pacientes, 1,69% reportou piora do quadro. Já Aran e colaboradores em 2018, com amostra de 60 pacientes, relataram que 61% dos pacientes apresentaram melhora no comportamento, 47% na comunicação e 39% na ansiedade. Ainda, 10% dos pacientes apresentaram piora em uma habilidade descrita acima e 19,9% abandonaram o tratamento por baixa eficácia.


O estudo randomizado de Aran et al. (2021) com 150 pacientes testou o uso do extrato de cannabis vegetal, em duas formulações, com o canabidiol e Δ9-tetrahidrocanabinol em uma proporção de 20:1 e com o canabidiol purificado e Δ9 tetrahidrocanabinol na mesma proporção. Os resultados mostraram que houve melhora dos problemas comportamentais dos pacientes em uso do extrato em relação ao placebo. Ainda, durante os três meses de uso da medicação, efeitos colaterais leves a moderados reportados foram: sonolência, diminuição de apetite, perda de peso, cansaço, euforia e ansiedade. Não houve nenhum efeito colateral grave reportado.


Trouxemos aqui uma pequena quantidade de estudos que referiram melhoras comportamentais com uso de canabidiol com e sem THC, porém há vários outros estudos evidenciando que o uso das mesmas substâncias não parece ser benéfico no autismo. Entende-se, a partir dos estudos, que o CBD associado ou não ao THC, parece ser seguro para o uso no TEA, porém ainda não são conhecidos os efeitos do uso de tais substâncias a longo prazo e o que podem causar no cérebro em desenvolvimento. Ressalta-se a necessidade de mais estudos que demonstrem a eficácia, efeitos a longo prazo e a segurança do uso do CBD em pacientes com TEA.


Lembre sempre que todo e qualquer tratamento deve ser discutido com o médico que acompanha para que ele avalie se aquela opção terapêutica é a mais indicada para o caso.



Este texto foi produzido como atividade do Projeto Padrinho Med.


O projeto Padrinho Med foi idealizado pela médica Flávia Ju e tem objetivo de aproximar os médicos dos estudantes de medicina, promovendo troca de experiências e produção de conteúdo tanto científico quanto informativo à população.





Autora do texto: Júlia Coutinho Cordeiro


Acadêmica do 7º período de Medicina da Universidade José do Rosário Vellano (Unifenas-BH)














Coautora e revisora: Benaia Silva - médica neurologista pediátrica.


Para mais informações sobre a autora clique na imagem ao lado.






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