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Ataxias cerebelares agudas na infância



Introdução


O termo ataxia vem do grego ‘‘ataktos’’, que significa ‘‘falta de ordem’’. No âmbito médico, tal significado é observado na prática, visto que a ataxia trata-se de um sinal neurológico caracterizado por perda da capacidade de organizar e modular os movimentos, levando a um prejuízo na coordenação motora e no equilíbrio.





A ataxia é especialmente debilitante em crianças, visto que elas ainda estão aprendendo e desenvolvendo as diversas competências motoras. Esse sinal geralmente está associado a lesões ou disfunções cerebelares ou de suas projeções, sejam elas eferentes e aferentes. Várias doenças neurológicas podem cursar com ataxia, podendo ela surgir como sinal principal ou dentro de um espectro neurológico mais amplo. Existem as ataxias congênitas e as adquiridas, estas podem ser classificadas em agudas, subagudas ou crônicas. Nessa postagem o enfoque principal será nas ataxias agudas, mais especificamente em um subtipo delas, as ataxias cerebelares agudas, que são queixas comuns nas salas de emergência pediátrica e um dos motivos que fazem os pais buscarem por um neurologista pediátrico.





Epidemiologia


A prevalência das ataxias na infância no mundo é de 26/100.000 crianças. Sabe-se que a causa mais comum de ataxia aguda na infância é a ataxia cerebelar, estima-se que ela ocorre em 1/100.000 crianças, correspondendo assim a cerca de 30 a 50% de todos os casos de ataxia em crianças menores de seis anos de idade.


Etiologia


A definição de ataxia aguda se baseia na verificação de instabilidade ao caminhar ou prejuízo na movimentação muscular fina, dentro de um período inferior a 72 horas em uma criança que estava previamente bem. Sua classificação pode ser baseada no sistema acometido e na etiologia. Seguindo esse critério as ataxias agudas podem ser dividas em ataxias cerebelares agudas, ataxias vestibulares agudas, ataxias sensoriais agudas, pseudo ataxias epilépticas agudas e ataxia aguda psicogênica ou funcional.


Dentro das ataxias cerebelares agudas encontram-se seis grupos, que variam de acordo com a etiologia, que pode ser imune, infecciosa, tóxica, paraneoplásica, traumática ou vascular. Dentro das ataxias vestibulares agudas encontram-se dois grupos, o das ataxias vestibulares associadas à migrânea e as disfunções vestibulares agudas unilaterais.




No âmbito das ataxias agudas, sabe-se que as ataxias cerebelares agudas de origem imunomediada ou infecciosa decorrem da desmielinização cerebelar após uma infecção ou imunização. Trata-se de um fenômeno auto-imune, que envolve uma reação cruzada de anticorpos contra os epítopos cerebelares. Numerosos agentes infecciosos têm sido apontados na patogênese dessa condição, entretanto o lugar de destaque, correspondendo a cerca de 26% dos casos, é ocupado pelo vírus da Varicela. Outros agentes incluem o paramyxovírus, vírus Epstein-Barr, Measles morbilivirus, B. pertussis, vírus de Coxsackie, rotavírus, enterovírus e mycoplasma. Exemplos dessas ataxias cerebelares agudas incluem a ataxia cerebelar aguda pós infecciosa, a encefalomielite aguda disseminada, a cerebelite aguda e a esclerose múltipla (como manifestação de um surto).


As ataxias cerebelares agudas de origem tóxica correspondem à segunda causa mais comum de ataxia aguda pediátrica, Elas decorrem da ingestão de drogas, sendo que sua sintomatologia cerebelar geralmente se manifesta após a ingesta de anticonvulsivantes, benzodiazepínicos, álcool e anti histamínicos. Com menor frequência, a ataxia pode surgir após exposição a metais pesados ou químicos orgânicos.


Em relação à etiologia paraneoplásica (relacionada à neoplasia - câncer) das ataxias cerebelares agudas, sabe-se que a presença de uma doença maligna facilita o desencadeamento de uma resposta imunológica, ativando tanto a imunidade celular, quanto a humoral. Neste último caso, a produção de anticorpos faz com que haja uma reação cruzada anormal contra os antígenos normais do sistema nervoso. A síndrome de opsoclonus-mioclonus-ataxia destaca-se como uma condição paraneoplásica que pode estar presente em casos de neuroblastoma, ela está associada à ataxia de início agudo. A ataxia também foi descrita como um fenômeno paraneoplásico em casos infantis isolados de doença de Hodgkin, histiocitose celular de Langerhans e hepatoblastoma.


No caso da etiologia vascular da ataxia cerebelar aguda, sabe-se que apesar dos infartos circulatórios posteriores serem raros em crianças jovens, eles devem ser considerados após um trauma de pescoço, visto que ele pode cursar com dissecção da artéria vertebral e em crianças com doenças tromboembólicas. A etiologia traumática segue a mesma vertente desta última no caso de traumas do pescoço. Além disso, injúrias na cabeça podem cursar com ataxia em decorrência de uma contusão ou hemorragia cerebelar ou devido à um hematoma extraparenquimatoso em fossa posterior.


Manifestações clínicas


Como já dito anteriormente, um dos subtipos das ataxias cerebelares agudas de etiologia imunomediada é a ataxia cerebelar aguda pós infecciosa. Ela geralmente surge após uma doença viral, seu início é súbito e geralmente ocorre de 10 a 15 dias após a doença prodrômica. Seu quadro clínico apresenta-se com sintomas cerebelares puros, dentre eles a ataxia de marcha e de tronco, dismetria, tremor intencional, hipotonia e nistagmo. Outro subtipo é encefalomielite aguda disseminada, que é uma doença inflamatória imunomediada do sistema nervoso central. Seu quadro clínico é transitório, multifocal, auto-limitado polissintomático e associado a algum grau de encefalopatia (caracterizada por alteração na consciência gerando um quadro de letargia ou coma e/ou alterações comportamentais como confusão ou irritabilidade excessiva). A ataxia aguda aparece em cerca de 50 a 75% dos pacientes, frequentemente acompanhada por paralisia dos nervos cranianos, hemiplegia aguda, convulsões e algum grau de alteração do estado mental. A cerebelite aguda é outro exemplo. Ela costuma surgir após uma infecção sistêmica e suas manifestações clínicas vão além da síndrome cerebelar pura, com cefaléias, vômitos e distúrbios da consciência variando de sonolência a coma. Essas manifestações surgem em virtude do edema cerebelar e da hidrocefalia, que comprimem o tronco cerebral. As ataxias estão presentes em 50% dos casos, além delas podem ser observados acometimentos dos pares cranianos, febre e rigidez nucal. O último subgrupo é a esclerose múltipla, uma patologia crônica, inflamatória e desmielinizante do sistema nervoso central. A ataxia pode caracterizar-se como uma importante manifestação inicial desta doença em adolescentes e em crianças menores que dez anos de idade.


O outro grupo das ataxias cerebelares agudas é o de etiologia tóxica. Após a ingestão, a ataxia geralmente é seguida de alterações no estado mental como letargia e confusão, vômitos e convulsões. A inalação de solventes contendo tolueno podem produzir uma lesão difusa na substância branca e mudança de sinal nos pedúnculos cerebelares, resultando em um quadro de ataxia, tremor cinético, titubeação e perda visual.


Um dos exemplos de ataxias cerebelares de etiologia paraneoplásica é a síndrome de opsoclonus-mioclonus-ataxia. Essa patologia tipicamente se desenvolve em poucos dias, e suas manifestações clínicas incluem: as ataxias agudas, que estão associadas à movimentações oculares rápidas, caóticas, involuntárias e multidirecionais (opsoclonus); espasmos mioclônicos das extremidades, cabeça, tronco e rosto; encefalopatia e distúrbios do sono. Nos casos de linfoma de Hodgkin, podem ser encontrados sintomas cerebelares de início agudo como as ataxias, juntamente com nistagmo e disartria.


Eventos vasculares, como o infarto hemorrágico cerebelar, possuem como principais manifestações clínicas outros sintomas além da ataxia propriamente dita, como rebaixamento do nível de consciência, cefaleias e vômitos. Além disso, esses eventos apresentam como manifestações clínicas déficit cerebelares assimétricos, que evoluem em associação com os déficits atribuíveis à isquemia do tronco cerebral.


As ataxias cerebelares de origem traumática geralmente são acompanhadas por encefalopatia, sobretudo naqueles pacientes com ferimentos traumáticos na cabeça. A ataxia é um sintoma comum após um traumatismo craniano fechado menor (concussão), apresentando-se como uma marcha instável. Dismetria de membros geralmente não é verificada. No caso de crianças mais velhas, podem ser encontrados sintomas adicionais como tonturas e cefaléia. Crianças mais novas com síndrome pós-concussional apresentam instabilidade da marcha de modo mais acentuado do que nistagmo e dismetria.


Diagnóstico


Sabe-se que mais de 80% das condições neurológicas mais comuns em crianças, incluindo a ataxia aguda, são possíveis de serem diagnosticadas por um exame clínico minucioso. Assim, etiologias inflamatórias ou infecciosas podem ser suspeitadas em caso de históricos de febre, achados cutâneos, como exantema, disfunções gastrointestinais, imunização recente ou contato com infecções. Sabe-se que ataxias cerebelares agudas pós infecciosas são diagnósticos de exclusão. A possível exposição a drogas e outros medicamentos (sejam eles prescritos para o paciente ou para algum outro membro da família) deve ser investigada, pois pode apontar para uma intoxicação. Traumas recentes de cabeça ou pescoço também devem ser investigados, pela sua correlação com dissecções da artéria vertebral e com outras causas relacionadas ao trauma.


O exame clínico deve testar tanto as funções cerebelares quanto os outros sistemas, a fim de verificar fraquezas ou polineuropatias. A presença de sinais extra cerebelares é importante para a realização dos diagnósticos diferenciais. A alteração do estado mental também deve ser considerada, uma vez que pode sugerir intoxicação, cerebelite aguda com edema cerebelar e aumento da pressão intracerebral ou encefalomielite aguda. A irritabilidade em excesso pode sinalizar uma síndrome opsoclonus-mioclonus-ataxia. O exame oftalmológico deve atentar-se à presença de nistagmo, anormalidades pupilares (presentes em intoxicações) ou oftalmoparesias (presentes na síndrome de Miller Fisher). As ataxias agudas não ocorrem exclusivamente devido a problemas cerebelares, podendo surgir devido a disfunções sensoriais ou vestibulares. Assim, é fundamental examinar de modo cuidadoso esses sistemas.


As investigações radiológicas e laboratoriais devem ser baseadas no cenário clínico. A tomografia computadorizada e a ressonância magnética têm pouca relevância na triagem diagnóstica (dentre todas as crianças avaliadas para ataxia, apenas 5% delas mostraram alterações nesses exames). Entretanto, sabe-se que entre esses dois, a ressonância é preferível, uma vez que ela possui maior sensibilidade, resolução de contraste e especificidade na descrição de lesões cerebrais. Ela é indicada para aqueles pacientes que apresentam sintomas que vão além que um quadro cerebelar puro, como por exemplo alteração de consciência ou sinais neurológicos focais ou com ataxia assimétrica acentuada. As imagens devem ser adquiridas em todos os planos (axial, sagital e coronal) e o agente de contraste deve ser injetado quando há suspeita de etiologias infecciosas ou inflamatórias.


O exame do líquor também pode ser feito na avaliação de crianças com ataxia cerebelar aguda, estudos mostraram que 43% desses pacientes possuíam pleocitose leve e número aumentado de proteínas no líquor.


O eletroencefalograma é indicado em dois casos. A primeira indicação é para crianças com histórico de convulsões e suspeita de pseudo ataxia aguda epiléptica. A segunda indicação inclui crianças sob suspeita de intoxicação aguda (a intoxicação por benzodiazepínicos pode gerar uma atividade rápida no eletroencefalograma). A eletromiografia e os estudos da velocidade de condução nervosa são considerados na avaliação de ataxias de início agudo, em casos que se suspeita da síndrome de Guillain-Barré.


A triagem de drogas na urina ou no soro deve ser uma parte padrão da investigação, visto que a intoxicação pode ser desconhecida (como ocorre em bebês) ou não relatada (no caso da síndrome de Munchausen). Além desses métodos, existe a cintilografia com Metaiodobenzilguanidina, usada para casos em que há suspeita de neuroblastoma. Ela tem alta sensibilidade na detecção de tumores, entre eles neuroblastomas abdominais, pélvicos e intratorácicos. A investigação desse tumor oculto deve ser feita em crianças com opsoclonus ou mioclonus, acompanhados de ataxia e também em pacientes com ataxia isolada, cujos sintomas não se resolvem dentro de duas semanas. A elevação das catecolaminas urinárias também pode estar associada ao neuroblastoma, dentre elas, destacam-se o ácido vanilmandélico e o homovanílico.


Além destes, destacam-se os testes de screening de distúrbios autoimunes, visto que sabe-se que patologias desse tipo desempenham um importante papel na etiologia das ataxias cerebelares agudas. Estes testes são realizados por meio da verificação da presença ou ausência de anticorpos antinucleares e antifosfolípides.


Tratamento / Prognóstico


O tratamento é direcionado segundo o diagnóstico:

A cerebelite pós infecciosa aguda geralmente é autolimitada, mostrando recuperação espontânea na maioria das crianças dentro da primeira semana. Em cerca de 50% das crianças a recuperação total ocorre dentro de três meses. Para uma criança com cerebelite pós inflamatória, inicia-se a investigação para descartar uma causa inflamatória e, após isso, realiza-se o teste de supressão com corticosteróides. Se ainda assim não houver melhora dos sintomas, utiliza-se a plasmaférese ou imunoglobulina intravenosa. A encefalopatia desmielinizante pós infecciosa pode ter sua recuperação acelerada pelo tratamento com corticosteróides. Sequelas significativas ocorrem na minoria dos pacientes e cerca de 10% das crianças afetadas podem ter recidivas. Tanto a encefalite do tronco cerebral, quanto às infecções sistêmicas devem ser tratadas com antibióticos e antivirais, de acordo com os protocolos pré estabelecidos. O desfecho da encefalite é incerto.


Crianças com a síndrome opsoclonus-mioclonus-ataxia frequentemente precisam de tratamento com imunoglobulina intravenosa e corticoides para evitar recidivas. Em casos de neuroblastoma não metastático, seu tratamento envolve a remoção cirúrgica do tumor. Nesses pacientes, o uso de hormônio adrenocorticotrófico, corticosteróides, imunoglobulina intravenosa apresentam importante papel na melhora dos sintomas.

Em casos de ingestão de substâncias tóxicas, o tratamento depende da quantidade e da natureza da substância que o paciente realizou a ingesta. Nesses casos, deve-se monitorar a concentração sanguínea da droga, bem como as funções hepáticas e renais. A estabilização dos sinais vitais também é importante, sendo que o objetivo é que o paciente elimine espontaneamente a droga. Na maioria das vezes não existe tratamento específico, para alguns casos pode ser necessária a administração de antídotos, a realização de terapia de quelação, diálise e outras abordagens.


As ataxias relacionadas à síndrome pós-concussional apresentam recuperação espontânea, geralmente dentro de seis meses. Pacientes acometidos por acidente vascular cerebral, tumores e lesões cerebrais traumáticas, apresentam maior suscetibilidade a apresentar sequelas importantes, com uma recuperação incompleta. Pacientes com hemorragias cerebelares significativas requerem tratamento com descompressão da fossa posterior. Em caso de dissecção da artéria vertebrobasilar, recomenda-se tratamento com terapia anti-plaquetária.


Segundo Connolly et al, 1994 dificuldades de aprendizado e distúrbios do comportamento estiveram presentes em cerca de 20% das crianças durante a fase de recuperação da ataxia cerebelar aguda, tais alterações se resolveram após 6 meses.


Orientações aos pais


A Associação Beneficente em prol dos Portadores de Ataxia (ABPAT) foi fundada em 2001, por Eduardo Rodrigues e tem por objetivo realizar a inclusão médica e social dos pacientes com ataxia. Nas redes sociais, a página do Instagram e do Facebook da associação possui postagens no intuito de difundir informações acerca da doença, permitindo também que os familiares e portadores dessa condição encontrem um espaço para tirar suas dúvidas e partilhar de suas dificuldades no dia a dia. A Associação organiza ações solidárias na forma de maratonas periodicamente a favor da conscientização. Além disso, existe a possibilidade de ajudar financeiramente essa organização, para mais informações acesse a página do Instagram: @abpat_bsb e do Facebook: ABPAT BSB


Logo da Associação Beneficente em prol dos Portadores de Ataxia

Este texto foi produzido como atividade do Projeto Padrinho Med.



O projeto Padrinho Med foi idealizado pela médica Flávia Ju e tem objetivo de aproximar os médicos dos estudantes de medicina, promovendo troca de experiências e produção de conteúdo tanto científico quanto informativo à população









Autora do texto: Laura Comeli Ordonho






Acadêmica do 7º período de medicina da PUC - Campinas











Coautora e revisora: Benaia Silva - médica neurologista pediátrica.



Para mais informações sobre a autora clique na imagem ao lado





Referências


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MORDEKAR, S.R. Ataxia in childhood: a pragmatic approach. Paediatrics and Child Health, https://doi.org/10.1016/ j.paed.2019.07.012.


CALDEIRA, F. et al. Ataxia aguda em idade pediátrica – revisão retrospectiva de cinco anos. Scientia Medica (Porto Alegre) 2012; volume 22, número 1, p. 3-11.


RODRIGUES MM, Vilanova LCP. Tratado de Neurologia Infantil. 1a. Edição, Editora Atheneu, 2016.


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